20 Março 2010
JOSÉ LEITE PEREIRA, PAULO FERREIRA E PAULO MARTINS
foto Orlando Almeida/Global Notícias
José Sócrates admite falar à "grande comissão, que é o Parlamento"
A comissão de inquérito ao caso PT/TVI é "um acto de profunda hipocrisia política, que apenas pretende instrumentalizar a Assembleia da República no ataque pessoal e político contra mim", afirma José Sócrates, em entrevista ao JN, cuja segunda parte será publicada amanhã, domingo. O primeiro-ministro não revela de que forma responderá perante a comissão, caso seja convocado.
Saiu recentemente uma sondagem que lhe é favorável. Aos olhos de muita gente, causa admiração como tem resistido ao fogo que sobre si incide. Não seria mais prudente sair para se defender? Tudo o que tem sido dito não afecta a sua actividade, não teme que fira a imagem que as pessoas têm de si?
Ao longo destes anos, nunca me faltou apoio do Governo, nem do meu partido, nem dos portugueses. Não encontro outra forma de reagirmos à calúnia, ao insulto e à maledicência que não seja a superioridade e até a indiferença por quem actua dessa forma. Uso a minha inteligência emocional para ignorar tanta coisa que se escreve e se diz. Lamento que alguns façam da nossa vida pública um exercício baseado na mesquinhez do ataque pessoal e que políticos e partidos pareçam ter desistido do país para se entregarem ao golpe baixo e à calúnia. Mas campanhas negras não resultam em Portugal. Quem recorre ao insulto, dispensando-se de provar o que diz, fica para sempre indignificado. Alguns políticos passaram o limite da consideração e respeito que em democracia é devido aos adversários.
Está a referir-se a membros de algum partido, especificamente?
Estou a referir-me, em particular, ao PSD. Chegam ao ponto de insultar um líder político, acusando-o de ter mentido no Parlamento, sem apresentar uma prova, um documento, um testemunho. Há quem invoque suposições. Mas quem insulta tem de fazer prova. E a prova só pode basear-se em factos, não em impressões ou em suspeitas. Temos vivido nos últimos tempos a política com base na ideia de que é preciso lançar suspeições, sem a mínima razoabilidade, com o único objectivo de atingir pessoalmente adversários.
As queixas são só contra o PSD?
Não me estou a queixar, estou a afirmar. Muitos dos outros partidos calam-se perante isto. Na Assembleia da República (AR), fui questionado por um deputado sobre se o Governo tinha conhecimento ou se deu alguma instrução para que determinado negócio entre a PT e a TVI se fizesse. Declarei que o Governo nunca foi informado, que nunca deu orientações, fosse a quem fosse, para proceder empresarialmente de um modo ou de outro. Mantenho o que disse. E todos os testemunhos conhecidos confirmam o que afirmei e desmentem em absoluto a intervenção do Governo. Todos. Mesmo assim, os partidos da Oposição insistem na tese de que não estão esclarecidos e na dúvida sobre se terei dito a verdade. É apenas uma ofensa gratuita.
Os partidos vão levar o assunto a uma comissão de inquérito.
É um acto de profunda hipocrisia política. Não pretendem apurar nada, mas manter uma suspeição e instrumentalizar a AR no ataque pessoal e político contra mim. Através da comissão de inquérito, não querem descobrir nada, porque já têm as respostas. Não andam à procura de esclarecimentos, o que querem é um palco para me atacarem.
O presidente da República disse que a prova de que os portugueses não estão esclarecidos é que foi criada a comissão de inquérito. Qual o seu comentário?
Há quem diga que não está esclarecido pela simples razão de que não quer esclarecimentos, quer é manter suspeições.
Se for convocado, aceita compare-cer ou responderá por escrito?
Eu respondo perante a grande comissão, que é o Parlamento na sua plenitude. Vou lá de 15 em 15 dias e não deixarei de responder a todas as perguntas e de criticar o comportamento de alguns. Henrique Granadeiro [presidente da PT] esclareceu na comissão de Ética que nunca informou o Governo, nem tinha de o fazer, sobre a intenção da PT de comprar a Media Capital. Zeinal Bava [presidente da Comissão Executiva da PT] explicou o racional económico do negócio. Também disse que nunca contactou nenhum membro do Governo. O mesmo afirmou Rui Pedro Soares. Ninguém melhor do que os próprios administradores sabe como as coisas se passaram. Não percebo a quem os deputados querem fazer mais perguntas. Mas a verdade é esta. Não receio nada. Não receio a publicação de nenhuma escuta. Reafirmo o que disse: o Governo nunca foi informado e nunca deu orientações a ninguém para uma acção empresarial no domínio da comunicação social.
Há dias, em entrevista televisiva, Cavaco Silva disse, cito de memória, que as reuniões com o primeiro-ministro são de trabalho. Assina de cruz?
Sim. São reuniões em que cumpro o meu dever de informar o presidente da República e em que temos conseguido abordar as principais questões nacionais e internacionais.
A questão das chamadas "escutas a Belém" e, sobretudo, a do Estatuto dos Açores, em momento algum esfriaram a relação entre os dois órgãos?
Sobre esse dossiê [das "escutas de Belém"], o PS disse tudo o que tinha a dizer, numa declaração de Pedro Silva Pereira, feita em nome do PS e de mim próprio. Disse na altura e mantenho - espero não ter de responder mais à pergunta - que estou bem consciente dos meus deveres institucionais.
Isso significa que a chamada cooperação estratégica se mantém, que a subscreve?
Subscrevo a ideia de uma cooperação institucional, porque é essa a minha leitura da Constituição. Tem sido preservada, mesmo naqueles momentos em que eu e o presidente da República pensamos de forma diferente. Isso não traz nenhum mal ao mundo. O que importa é que os portugueses saibam que entre o primeiro-ministro e o presidente da República há perfeita consciência dos deveres de cada um, respeito pelas suas esferas de competências e uma relação institucional que prestigia as duas instituições.
Onde se manifestam as diferenças?
Já notei algumas. Pensamos de forma diferente em relação ao Estatuto dos Açores - sempre achei que a nossa proposta era a melhor e era constitucional -, no que diz respeito à lei da paridade, à lei do divórcio, matéria em que a sociedade portuguesa precisava de fazer mudanças, com vista a evitar o sofrimento, numa relação que já não pode prosseguir… Pensamos de forma diferente, também, no que diz respeito à interrupção voluntária da gravidez.
Tudo temas sociais…
Sim. Dei nota dos momentos em que o presidente da República discordou das opções do Governo, ou do Partido Socialista. Mas insisto que isso não retira respeito mútuo. O mais importante é que ambos cultivamos os deveres de cooperação institucional e do respeito pela área de competências de cada órgão de soberania.
Quero confrontá-lo com uma frase proferida esta semana por Mário Soares, que mostrou algum incómodo com o que entende ser a falta de debate no partido: "O PS pode tornar-se um partido morto e ineficaz". Quer comentar?
O PS não só está vivo, como está concentrado na sua tarefa principal: responder à responsabilidade que os portugueses lhe deram de governar.
Considera, então, exagerada a análise de Mário Soares.
Não digo isso. Eu tento, na medida das minhas possibilidades, contribuir para esse debate. E respeitei sempre as diferentes sensibilidades internas, por muito minoritárias que pudessem ser. Ainda este fim-de-semana promoveremos em Braga uma convenção com o movimento Novas Fronteiras. Será uma ocasião para mostrar um PS vivo e aberto à sociedade. Tenho bem consciência da necessidade de ter o partido mobilizado e empenhado no debate público, porque está entregue a si próprio. Vemos muitas vezes uma articulação entre os partidos com o único objectivo de criticarem o Governo. Repare que a comissão de inquérito é feita com base numa coligação entre o BE e o PSD, o que diz tudo sobre o comportamento dos partidos. É uma actuação muito insólita.
Quando diz que o PS está entregue a si próprio, está a vitimizar-se, a dizer que estão postas em causa condições para governar?
Não tenho feitio para me fazer de vítima. Eu luto. Mas de cada vez que me defendo, dizem que estou a vitimizar-me. O PS tem sido objecto de ataques permanentes de todos os outros partidos. Já dei o exemplo da comissão de inquérito, que tem como objectivo o ataque político. Transpõe uma linha da maior importância na nossa vida pública. Nunca discuti o carácter dos meus adversários políticos. Quem o faz, diz tudo sobre o seu próprio carácter e sobre os meios a que está disposto a recorrer. A política do "vale tudo" prejudica a democracia.
A 24 de Junho de 2009, também disse na AR que o Estado não se envolve em negócios de uma empresa predominantemente privada. Dois dias depois, tomou a iniciativa de abortar o negócio.
Dois dias depois, expliquei que o Estado se oporia, porque não queria que ficasse a mínima suspeita de que alguém pretendia alterar linhas editoriais.
A afirmação foi interpretada como sendo o Estado a acabar o negócio. Ora, nessa altura, sabia que tinha terminado. Henrique Granadeiro informou-o na véspera.
Informou-me de tudo o que se passara e disse-me que a decisão dele ia no sentido de não avançar. E eu a 26 de Junho expliquei que o Estado se oporia para que não ficasse a mínima suspeita.
Receou que o negócio pudesse ser interpretado como "frete" ao Governo, como disse Granadeiro na comissão de Ética?
Pois. Ou como uma intervenção ilegítima do Governo no negócio, que como Zeinal Bava explicou correspondia a um interesse empresarial da PT.
O presidente da República disse que no seu tempo [de primeiro--ministro] o Governo tinha sempre conhecimento deste tipo de situações...
Eram, de facto, outros tempos. Em sete dos seus dez anos, só havia uma televisão, e era pública. Que não tinha garantias, hoje existentes, de autonomia e independência da Administração e, principalmente, da Direcção de Informação. No meu mandato, já se vendeu uma televisão - justamente a TVI, à Prisa - e fui apenas informado depois de o negócio concluído. O que desejo é que na compra e venda de televisões ninguém tenha de perguntar ao Estado se está satisfeito. Devem comunicar às instituições que regulam esse mercado, a CMVM e a ERC. É este o país em que acredito.
Ficou por esclarecer se tenciona ir à comissão de inquérito ou se vai responder por escrito.
Repito: respondo perante o Parlamento.
Está a fugir à questão. Se o chamarem vai ou não?
Não quero antecipar cenários.
Acha possível não o chamarem?
A minha resposta é esta: não há nenhuma razão para se fazer uma comissão de inquérito, a não ser para me atacar. Acusam-me de faltar à verdade. Faça a pergunta: "Pode provar o que diz"?
Supostamente, é por isso que há uma comissão de inquérito, para apurar se a suspeita corresponde ou não à verdade.
Acha que, se eu lançar uma suspeita sobre um adversário, devo fazer uma comissão de inquérito?
Não, mas deve respeitar os poderes de fiscalização da AR, de que as comissões de inquérito são instrumentos.
Não se iluda, nem me queira iludir. As perguntas foram feitas e as respostas dadas. O único objectivo, repito, é um ataque político. A quem mais querem perguntar?
Os deputados têm legitimidade para entender que tem de depor.
Pois têm. Mas você é jornalista, também pode interrogar-se sobre quem é que falta ouvir.
A minha opinião é indiferente.
Eu sei. Mas não fuja à pergunta, como há bocado me disse que fugi à sua. A quem podem perguntar que não tenha já sido ouvido?
A comissão de inquérito tem poderes judiciais, ao contrário da comissão de Ética.
Que argumento é esse? Acha que as pessoas respondem de forma diferente?
A capacidade de apurar factos é diferente. Por isso os deputados decidiram avançar para uma comissão de inquérito.
Não está a dizer o que pensa. Os deputados tomaram essa decisão com o único propósito de me atacar pessoalmente. Querem manter o clima de suspeição. Se alguém tivesse evidência de uma contradição, aceitaria. Doutra forma, a intenção é evidente.
Há uma expressão sua que ajudou a criar alguma confusão, a distinção entre conhecimento e conhecimento oficial.
Disse e mantenho que era público desde há mais de um ano que a Prisa queria vender activos, entre os quais a Media Capital. Era a isso que me referia, nada mais. A tese delirante do controlo da comunicação social pressupõe que o Governo deu orientações a alguém para agir de determinada forma. Ora isso não é verdade.
Nunca falou, durante esse período, com Rui Pedro Soares?
Já me fizeram essa pergunta dez vezes. Nunca falei com nenhum administrador da PT sobre a compra da TVI.
Disse na entrevista a Miguel Sousa Tavares, na SIC, que se alguém invocou o seu nome foi abusivamente. Não deveria, então, ter agido contra quem o fez?
Não tenho nenhuma prova disso.
Há publicação de escutas.
Escutas sobre conversas privadas não são tema político. Eu não branqueio crimes de violação do segredo de Justiça, que são crimes contra as pessoas e contra a dignidade da Justiça.
Rui Pedro Soares já lhe pediu desculpa por o ter envolvido indirectamente nesta questão?
Não tem de me pedir desculpa. O que foi cometido, com a publicação de escutas, foi um crime contra ele. Lamento não ter visto nenhum líder político condenar esse crime. Pelo contrário: vi muitos tentarem aproveitar-se desse crime para o usarem contra mim.
00h46m
JOSÉ LEITE PEREIRA, PAULO FERREIRA E PAULO MARTINS
"Não tenho nenhum sinal de que o PSD não adopte uma atitude responsável", diz o chefe do Governo, que reage às críticas de Manuel Alegre ao documento.
Falemos de obras públicas. Por que não foram cortadas obras em Lisboa e há cortes no TGV para o Porto e no TGV Porto-Vigo?
Este PEC mantém as principais opções de investimento público este ano e em 2011. Onde estamos a investir o dinheiro dos portugueses? Em barragens - as principais são no Norte -, centenas de escolas, dez hospitais...
Tudo isso é para manter?
Sim. E o investimento em creches e na modernização de infra-estruturas. Toda a polémica resulta de suspender por dois anos a construção do TGV Lisboa-Porto e Porto--Vigo. Dizer que representa um recuo no investimento público… Estamos a manter o aeroporto e o TGV Lisboa-Madrid! Porquê adiar aquelas obras? Porto-Vigo tínhamos de adiar, porque a Espanha o fez. E adiamos Lisboa-Porto para garantir que até 2013 essa linha não terá efeitos no orçamento. Não se trata de desistir do investimento, mas de adiar este projecto. Também para criar um certo consenso à volta do PEC, que precisa de ser assumido pelo país.
O que quer dizer com isso?
Um PEC, que vincula o país nos próximos quatro anos, tem de ser discutido e assumido pelas instituições portuguesas.
É necessário que o PEC seja votado no Parlamento?
Acho que tem de resultar numa resolução, como os anteriores.
As circunstâncias são diferentes.
Pois são. E por serem diferentes vamos apresentar um PEC que não tem coragem de ir a votos? Não faço isso. Lá fora sabem bem o que se passa. Temos de dar garantias de governabilidade e de que as medidas serão adoptadas.
Se o coloca a votação, pode não obter a maioria…
É verdade. Mas espero que todos sejam responsáveis, porque o país precisa de ter um PEC que dê garantias às instituições europeias.
Considera, portanto, pouco provável que surja mais uma coligação negativa para o inviabilizar?
Isso seria uma total irresponsabilidade. Seria muito negativo para Portugal.
Se entrarmos numa fase de ingovernabilidade, a culpa será da Oposição e não do Governo. É o que quer dizer.
O Governo cumpre a sua obrigação. Apresenta o seu PEC, como fez, e muito bem, Manuela Ferreira Leite com o anterior, que também foi votado na AR. Não me atreveria a enviar um PEC para Bruxelas sem dar garantias de que será aplicado.
Espera dos partidos da Oposição o mesmo comportamento que tiveram na votação do Orçamento?
Espero. Não vejo razões para que isso não aconteça.
Os sinais não são esses. Os que vêm do CDS, do PCP, do BE...
O CDS e os partidos mais à Esquerda têm muita necessidade de afirmar bandeiras e lutar pelo seu crescimento eleitoral. O Governo e o PS não estão aqui para defender o seu capital político, mas para fazer o que é necessário ao país. Lamento que alguns partidos só pensem em ganhos eleitorais e não em soluções.
Isenta o PSD dessa atitude?
Não tenho nenhum sinal de que o PSD não adopte uma atitude responsável.
O que seria uma atitude responsável? Votar a favor?
Seria fazer uma votação por forma a que o PEC seja aprovado. Cada um assumirá as suas responsabilidades. Lembro o início desta legislatura, em que os partidos aprovaram uma série de leis que reduziam a receita fiscal em 800 milhões de euros. Fui acusado, então, de dramatizar, mas quem se portou com total irresponsabilidade foram os partidos, ao fazerem coligações negativas com o único objectivo de serem populares. Hoje, já ninguém tem dúvidas de que era o Governo que tinha razão.
Ouviu o que Manuel Alegre disse sobre o PEC?
Ouvi e não concordo. Este PEC é justo e necessário, porque distribui com equidade os esforços. Mas discordo sobretudo porque entendo que não faz parte do papel do presidente da República ter uma agenda alternativa de governação. A agenda da governação discute-se nas legislativas e não nas presidenciais.
00h30m
JOSÉ LEITE PEREIRA, PAULO FERREIRA E PAULO MARTINS
Primeiro-ministro diz que PEC visa redução do défice e recuperação económica. E espera compreensão dos sindicatos da Função Pública.
Na segunda parte da entrevista ao JN, mais centrada em questões económicas, José Sócrates pronuncia-se sobre o Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC). Responde às críticas e afirma que seria "uma total irresponsabilidade" se a Oposição parlamentar o chumbasse.
O Orçamento do Estado (OE) para 2010 está aprovado e o PEC quase pronto. Estão reunidas condições para governar?
O OE foi uma vitória política do país, que agora precisa de uma perspectiva económico-financeira para os próximos anos, capaz de responder a dois principais desafios: recuperação económica e contas públicas em ordem. Portugal teve em 2009 um dos melhores resultados económicos da Europa - regredimos 2,7%, enquanto a Europa regrediu 4%. O PEC, depois de debatido na Assembleia da República (AR), será entregue em Bruxelas. Mas as instituições europeias já têm um conhecimento claro do que pretendemos fazer. Fico muito satisfeito com as reacções, que lhe atribuem credibilidade. Noto que enfrentamos a maior crise económica e financeira dos últimos 80 anos. O nosso défice orçamental subiu 6,6%, em linha com o que aconteceu noutros países. Desta vez, os estados fizeram o que deviam: aumentaram o investimento e a protecção social. Por isso, estamos já com perspectivas de crescimento económico. Mas temos também de enfrentar o desequilíbrio das contas públicas. Espero que o país possa contar com o sentido de responsabilidade de todas as forças políticas.
Uma das críticas dos partidos da Oposição ao PEC diz respeito à questão da despesa do Estado, que deveria ser mais reduzida.
Isso é contrário ao que está escrito no PEC. Temos de reduzir o défice orçamental de 8,3%, que atingiremos este ano, para 2,8%, em 2013. O nosso esforço será de 5,5%. Cerca de 2% será obtido em virtude do crescimento económico, por efeito dos estabilizadores automáticos, e 3,5% através das medidas que propomos. Desta parcela, como se reparte o esforço? 0,8 em virtude do aumento da receita fiscal e 2,7 pela redução da despesa. Portanto, este PEC assume que o principal esforço para consolidar as contas públicas se fará do lado da despesa e não da receita.
Estamos a falar de que despesa? De âmbito social, por exemplo, ou de estrutura e funcionamento?
De todas. É uma ficção pensar que se pode fazer um esforço desta natureza apenas reduzindo na despesa de funcionamento. Na despesa com pessoal, agiremos através de medidas como a substituição de dois funcionários por um. Na Saúde, não é possível aplicar esta regra, mas noutras áreas temos de fazer um esforço maior.
A área da Saúde é uma das que mais pesa em recursos humanos.
Sim, mas a regra já produziu efeitos: reduzimos globalmente o número de funcionários em 73 mil, o que nunca aconteceu em 30 anos de democracia. Outra medida é a forte contenção orçamental. Congelámos os vencimentos dos funcionários públicos, que em 2009 foram aumentados em 2,9%, o que representou um ganho de poder de compra de 3,7, somando a inflação negativa de 0,8.
Os sindicatos vão responder que nos sete ou oito anos anteriores os funcionários públicos perderam sempre poder de compra.
Mas se compararmos a evolução dos salários da Função Pública nos últimos 20 anos com o sector privado não teremos essa visão.
Espera grande contestação social?
Não, espero que as medidas sejam compreendidas. Não fomos, neste PEC, para as medidas fáceis, como aumentar o IVA. Em quatro anos, baixámos a percentagem da riqueza que se gasta com funcionários públicos de 14,5 para 11,5% e queremos baixá-la para 10%. Tenho a certeza de que os sindicatos também compreenderão que temos uma obrigação de contenção nos próximos quatro anos, apenas em nome da recuperação económica. É absolutamente imperioso. Vamos, por outro lado, reduzir as despesas na área da Defesa.
A redução já está prevista no OE…
Não. No OE está uma cativação. Agora, decidimos cortar 40% da lei de programação militar, esforço que, tenho a certeza, será compreendido pelas Forças Armadas. Não vamos assumir mais compromissos na área da Defesa. E vamos, ainda, limitar a contratação fora do Estado, em outsourcing. Este é um PEC baseado em medidas justas, com repartição equilibrada de esforços.
00h30m
JOSÉ LEITE PEREIRA, PAULO FERREIRA E PAULO MARTINS
Continuação da entrevista ao primeiro-ministro, José Sócrates.
Reduzir benefícios fiscais não é o mesmo que aumentar impostos?
Não, é reduzir a despesa fiscal.
Significa que há menos dinheiro disponível para o contribuinte.
Significa que vamos agir finalmente numa das áreas mais contestadas e injustas do nosso sistema fiscal. Se comparar as deduções no primeiro e no último escalões do IRS, a conclusão é escandalosa. Por cada euro deduzido no primeiro escalão, são deduzidos 20 no mais alto. Quem tem maiores rendimentos beneficia mais. É um sistema regressivo, fonte de injustiça.
No programa do Governo estava estabelecido que o controlo da evolução da despesa pública seria feito, cito, "rejeitando o agravamento de impostos".
O PEC não agrava nenhuma taxa nem escalão. Com um única excepção, o novo escalão de 45%, que é transitório. Mas é um imperativo de justiça pedir um contributo adicional a quem tem rendimentos superiores a 150 mil euros por ano.
É curioso que vários vezes o governador do Banco de Portugal falou na necessidade de aumentar impostos e o primeiro-ministro sempre disse que não. Agora, no PEC, surge um novo escalão.
Fizemos isso não tanto com base na receita esperada, mas por um critério de justiça.
As deduções serão reduzidas a partir do terceiro escalão, o que já atinge alguma classe média.
Serão feitas a partir da parte superior desse escalão.
Por que é que não foi mais claro sobre esta matéria, quando o PEC foi apresentado?
Recomendo que leia a moção que apresentei ao último congresso do PS, em 2009, onde já falava na necessidade de agir nas deduções fiscais, para corrigir a injustiça, limitando aos mais ricos o excesso de deduções. Está também assumido no programa eleitoral.
Está, então, em condições de afirmar que a classe média não é afectada por esta alteração?
A reforma que vamos introduzir tornará o nosso sistema fiscal mais justo. Estávamos a subsidiar com dinheiro do Estado quem recorre a colégios particulares e a sistemas de saúde privados, garantindo que tudo era deduzido nos impostos. Não há maior injustiça do que a que existe hoje. Mas não eliminamos deduções fiscais; criamos um tecto. No PEC, procurámos o equilíbrio, sem prejudicar a economia. Repare que deixámos imaculado o lado das empresas, que queremos que contribuam para o crescimento económico, que contratem trabalhadotes e invistam mais.