Editorial: Das bombas de Bissau ao adeus à cadeira do director
31.10.2009 - 14:54 Por José Manuel Fernandes
"Preciso de lhe falar. Quando é que volta a Lisboa?"
Voltar a Lisboa? Mas acabara de chegar para render o anterior enviado do PÚBLICO, ninguém sabia quanto tempo duraria o conflito, o aeroporto estava fechado, só montar a viagem de regresso seria uma enorme incógnita...
"Tem de ser. Antes do fim do mês."
Perdi a timidez e perguntei se era para ouvir a minha opinião sobre o PÚBLICO e uma solução para a sua direcção. Se fosse para isso, não valia a pena eu regressar, dar-lha-ia pelo telefone. Não era. Era para saber se eu estava disponível para ser o director.
Nessa altura, um enorme estrondo fez abanar o edifício da RTP em Bissau, mas não interrompemos a conversa. Combinámos que veria como poderia regressar e depois lhe falaria. Tudo por entre o ruído de explosões de granadas de artilharia. Até que, antes de nos despedirmos, me perguntou: "Isso são tiros?" Eram. Então...
"Coragem."
Pousei o telefone, sentei-me no chão e, face ao olhar incrédulo de Cândida Pinto, da SIC, disse apenas: "Não vais acreditar quando te contar o telefonema que recebi."
Passaram mais de onze anos e lembrei-me muitas vezes desse voto de Carlos Moreira da Silva. Não por ter tido, de novo, a oportunidade de cobrir um conflito militar. E também não pelo que, como director do PÚBLICO, me coube fazer, impulsionar, estimular ou dirigir.
Este foi - e continuará a ser - o grande projecto profissional da minha vida.
Pela ambição que desde o início teve, a ambição de fazer em Portugal um diário de qualidade como os grandes diários europeus, algo só possível pela reunião entre uma equipa então liderada por Vicente Jorge Silva e um empresário como Belmiro de Azevedo. E enganam-se todos os que ainda hoje pensam que este jornal só sobreviveu graças ao músculo financeiro da Sonae: este jornal triunfou e é o que é porque a Sonae e a família Azevedo - o Belmiro, o Paulo, a Cláudia -, desde a primeira hora, entenderam que qualidade implicava independência e, para além de darem toda a liberdade editorial, nunca cederam a quem, em muitos e diferentes momentos, quis que influenciassem a orientação do PÚBLICO.
Pelas oportunidades que aqui tive - e a maior de todas foi ter podido conviver e trabalhar com muitos dos melhores jornalistas portugueses, foi ter podido ver nascer e crescer muitos dos nomes que hoje fazem a diferença na profissão. Os que estão no PÚBLICO e os que saíram do PÚBLICO, ainda todos parte de uma grande família que mesmo a passagem por muitos momentos difíceis nunca desarticulou.
Pela exigência que sempre colocámos em tudo quanto fizemos, mesmo nos projectos que nunca chegaram tão longe quanto desejámos. Exigência editorial, marca de água desta casa. Mas também exigência como projecto empresarial, pois a Sonae, correctamente, nunca desistiu de conjugar o sucesso editorial com o sucesso empresarial.
Nos momentos de euforia e nas curvas mais difíceis de toda a sua história, e em particular nestes últimos onze anos, quando havia dúvidas, opções a tomar, riscos a correr, nunca senti que a palavra-chave fosse "coragem", antes determinação, abertura para ouvir todas as opiniões, preocupação em agir com a justiça e rectidão nos sempre complexos processos de mudança e reestruturação.
Se posso dizer que dei o meu melhor, sei que recebi muito mais de todos com quem trabalhei, a todos os níveis, do accionista ao mais jovem dos jornalistas da equipa do PÚBLICO.
Coragem para se ter estes privilégios? Não, as bombas de Bissau eram mais perigosas.
Coragem, como por vezes me pediam leitores com que me cruzava na rua, por o PÚBLICO ser como é e eu sempre ter escrito o que pensava? Essa "coragem" seria mais necessária noutros tempos, não quando vivemos em liberdade.
É mesmo condição de vitalidade de uma democracia aberta ter jornais que publicam histórias incómodas, e directores que escrevem textos controversos. E também foi para isso que, quando nasceu, em 1990, o PÚBLICO escreveu no seu Estatuto Editorial que era - e foi, e será - "um projecto de informação em sintonia com o processo de mudanças tecnológicas e de civilização no espaço público contemporâneo" e "um diário de grande informação, orientado por critérios de rigor e criatividade editorial, sem qualquer dependência de ordem ideológica, política e económica".
Ora ter um papel central no espaço público contemporâneo implica não se estar limitado por preconceitos ou temas-tabu. Por isso o PÚBLICO nunca pesou notícias em função da sua "conveniência" ou "oportunidade", antes avaliou-as em função do seu interesse público e do cumprimento das normas de rigor que regem a profissão de jornalista. Nunca evitou, em nome da relevância de uma investigação ou da pertinência de uma opinião, correr o risco de perturbar a tranquilidade dos poderes instalados. Nem nunca fugiu a uma controvérsia mesmo quando esta cruzava as próprias páginas do jornal.
Em 2005, no prefácio à 2.ª edição do Livro de Estilo, escrevi que "a capacidade de surpreender, entrar em áreas aparentemente interditas ou ter a sensibilidade para trazer para as suas páginas casos humanos relatados com elegância, profundidade e sem inútil voyeurismo distingue-nos quer da imprensa oficiosa, quer da sensacionalista". O que sempre constituiu um desafio quotidiano para todos os jornalistas, editores e directores que, ao longo dos anos, fizeram do PÚBLICO o que o PÚBLICO é hoje.
Eu, que hoje me despeço dos leitores enquanto director, fui apenas um dos que enfrentaram esses inúmeros desafios - com mais responsabilidades nos erros e nos sucessos, mas apenas um entre muitos.
Talvez por isso mesmo a minha primeira preocupação nestes onze anos tenha sido a de manter-me fiel a essas linhas iniciais do Estatuto Editorial.
Assim inovávamos, e inovámos muito. O enorme sucesso do publico.pt está aí a atestá-lo. Tal como os produtos originais, disruptivos, que fomos criando e nos obrigaram sempre a reflectir sobre como estar mais perto dos leitores. Não tivemos medo de mudar - mas nunca caímos na tentação de mudar apenas por mudar, pois se as tecnologias permitem muitas inovações, estas só fazem sentido ao serviço dos leitores e da cidadania em geral.
Daí também nunca ter receado o pluralismo, a controvérsia, o contraponto franco e aberto de posições diferentes. O sempre ter acreditado na inteligência dos leitores e na sua capacidade para avaliar argumentos contraditórios e olhares diversificados, razão por que o valor de uma reportagem ou de uma opinião é maior quando esta é clara, frontal, capaz de reflectir os limites das diferenças nos pontos de vista em vez de os dissolver com receio de ferir susceptibilidades.
É isso que faz do PÚBLICO um projecto comum de pessoas que têm, do mundo, visões muito diferentes, pois sempre fiz questão que se apreciasse a diversidade e se ampliassem os espaços de liberdade.
Interrogar-se-ão muitos leitores por que decidi pedir para deixar de ser director. Sem falsas humildades, assumo que se sempre pensei ser uma obrigação de quem ocupa lugares de responsabilidade ter a coragem de sair quando percebe que outros podem fazer melhor, eu próprio não podia actuar de forma diferente.
Tenho 52 anos e, espero, ainda muitos anos de vida profissional pela frente. Mas, ao fim de 20 anos com responsabilidades directivas no PÚBLICO, estes últimos onze como director, senti que já não era a melhor pessoa para continuar a mobilizar a 120 por cento (a 200 por cento?), 363 dias por ano, 24 horas por dia, todas as vontades e todos os esforços necessários para tornar o jornal todos os dias melhor, para que todos os dias ele esteja à altura do que esperam os seus leitores e do papel que, como jornal livre num país que se quer livre e com uma cidadania informada e activa, o PÚBLICO tem de continuar a desempenhar.
Não foi uma decisão fácil. Nem foi fácil tê-la tomado em Maio mas sentido que devia manter-me em funções até que terminasse um ciclo eleitoral que então ainda não se iniciara. Mas entendi que tinha esse dever para com a equipa do jornal, para com quem me substitui, para com o accionista e, sobretudo, para com os leitores.
Volto agora a ser jornalista desgraduado. Não deixarei por isso de - e, perdoem-me a ousadia, peço por empréstimo a expressão a esse gigante que foi Raymond Aron - continuar a tentar ser um "espectador empenhado" dos nossos destinos colectivos.
E o PÚBLICO, a que continuarei ligado, fica nas boas mãos da sua extraordinária equipa.
José Manuel Fernandes - editorial de saída do Público
Posted by
j. manuel cordeiro
on Monday, November 2, 2009
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