O labiríntico tarifário da CPComboios

O labiríntico tarifário da CPComboios

Viajar de comboio pelo país pode dar muito trabalho e a culpa é da manta de retalhos em que a transportadora ferroviária se transformou. CP Lisboa, CP Porto, CP Regional e CP Longo Curso trabalham com tarifários e horários que nem sempre são integrados. Imaginámos diferentes viagens para mostrar as dificuldades dos passageiros. Por Carlos Cipriano

 

O senhor Manuel foi emigrante e quis reviver com a neta a viagem de dez horas que fez do Bombarral para Vilar Formoso, quando tentou o "salto" para a França em 1968. Pensando que hoje a coisa era mais rápida, nem consultou horários e apresentou-se na estação do Bombarral para o comboio das oito da manhã.

Aventurou-se e demorou 14 horas. A viagem que, 40 anos antes, realizara com um único transbordo teve de ser feita agora com - pasme-se! - cinco comboios.

Eis a aventura: primeiro, um comboio para as Caldas da Rainha, onde mudou para outra composição que o deixou no meio dos arrozais do Mondego num apeadeiro chamado Bifurcação de Lares. Ali apanhou um suburbano vindo da Figueira da Foz para Coimbra e depois outro comboio para a Guarda onde, pela última vez, mudou para o regional para Vilar Formoso. E, como se não bastasse o tempo de viagem e os transbordos, o bilhete vendido pela CP foi mais caro, porque resultou do somatório de todas estas viagens: 23,65 euros. Mais do que os 20 euros de uma viagem de Lisboa para Vilar Formoso em comboio directo. Ou seja: na CP viajar 220 quilómetros em vários regionais (por falta de alternativa) é mais dispendioso do que uma viagem directa de 434 quilómetros.

O senhor Silva vive em Queluz e quis visitar um colega em Torres Vedras. Há anos que não viajava de comboio em Portugal, mas pareceu-lhe esta a melhor opção, já que a tinha logo ali, bem perto de casa. A primeira surpresa foi logo na estação de Queluz. Que não podia comprar um bilhete directo para Torres, dizem-lhe na bilheteira. Que desembolsasse primeiro 1,20 euros até ao Cacém e que comprasse lá o bilhete para o outro comboio (mais 3,15 euros) para Torres Vedras.

Mas afinal isto é só uma viagem de 50 quilómetros, pensou. Era seu desejo comprar o bilhete de ida e volta, mas lá teve de adquirir novo título para o seu destino. Já no regresso perguntou se lhe podiam vender os dois bilhetes em Torres Vedras, mas o ferroviário perguntou-lhe para quê, se podia vender um único bilhete directo. O senhor Silva espantou-se: para a ida teve de comprar dois bilhetes, mas para a volta já podia fazer a viagem com um só?

Que confusão. Como se não bastasse demorar uma hora e meia para fazer 50 quilómetros a passo de caracol, ainda teve de ouvir uma explicação sobre as "unidades de negócio" da CP. Que ali em Torres, aquilo era a CP Regional, mas que em Queluz era a CP Lisboa.

E é esta a história que teria para contar, se o senhor Silva existisse. A personagem, como todas as que viajam em comboio neste texto, não é real. Ao contrário da esquizofrenia a que os passageiros da CP estão sujeitos, que é bem real e a razão destas viagens que imaginámos.

O casal Gonçalves vive em Lisboa e resolveu passar o fim-de-semana em Beja. Optou pelo comboio. De Entrecampos ao destino foram só 2h10 de viagem, num Intercidades ao preço de 11,50 euros por pessoa. Mas já o regresso foi uma verdadeira surpresa: uma automotora desconfortável a tremelicar pela planície até Casa Branca, onde o casal apanhou, aliviado, o Intercidades vindo de Évora para Lisboa. Ao todo demorou mais tempo do que na ida, viajou num comboio de categoria inferior e teve um transbordo. Por isso pagou 14,40 euros, ou seja, mais 2,90 euros do que na ida.

Tarifa não quilométrica

A Rute, que queria ir de Coimbra ao Porto, também se surpreendeu quando o revisor do comboio regional lhe pediu mais 3,50 euros para revalidar o bilhete. A Rute estava em Coimbra e o Alfa Pendular estava atrasado devido a um problema com um passageiro. Encontrou uma amiga que ia apanhar o regional para Aveiro e nem pensou duas vezes, julgando que o seu bilhete era mais do que suficiente para viajar no vagaroso regional até à Invicta. Na Suíça, um país com a dimensão de Portugal onde estivera, podia-se apanhar um comboio a qualquer hora porque as tarifas são quilométricas e não é preciso marcação de lugar.

Mas não. Na CP um bilhete de 15 euros não permite viajar num comboio onde só se paga 8,10 euros.

Também o Vítor ficou espantado quando descobriu que para viajar de Guimarães para Lisboa pagaria 21,65 euros, quando em sentido contrário tinha pago 20,50 euros. Com a diferença de que agora tinha de apanhar um comboio que parava em todo o lado até Campanhã e demorava mais uma hora na vinda no que na ida. E o João, que queria ir de Estarreja para Azambuja (ambas estações da linha do Norte), teve de se aventurar em três comboios porque, apesar de viajar no principal eixo ferroviário do país, não tinha ligações directas.

Paremos então com as personagens fictícias com dificuldades que qualquer passageiro real pode sentir e passemos ao mundo que existe. Viajar de comboio pelo país pode dar muito trabalho e a culpa é da manta de retalhos em que a transportadora ferroviária de Portugal se transformou, quando foi dividida em quatro unidades de negócio - CP Lisboa, CP Porto, CP Regional e CP Longo Curso. Há bilheteiras diferentes nas estações e os gabinetes de apoio ao cliente rejeitam reclamações ou pedidos de informação que não sejam da sua unidade de negócios.

"A lógica da CP em unidades de negócios era no sentido da privatização. Essa situação originou que as unidades trabalhassem de forma autónoma e as forças integradoras não conseguiram vencer essa força autónoma", diz o presidente da CP, Cardoso dos Reis.

A verdade é que cada unidade de negócios funciona como uma "mini CP" e tem a sua própria frota de material circulante e quadro de pessoal (maquinistas e revisores). José Rafael Nascimento, professor de Marketing no Instituto Superior de Comunicação Empresarial, diz que estas situações vividas pelos passageiros da CP contrariam o paradigma da conveniência, em que as empresas procuram prestar serviços completos e integrados aos seus clientes, o que não é o caso do transporte ferroviário em Portugal, com um tarifário incompreensível e uma exploração baseada em percursos.

Incompreensível? Há razões - às quais os clientes da CP são alheios - que podem explicar esta forma de gestão. A transportadora pública, ao contrário do que acontece com as suas congéneres europeias, não tem um contrato de prestação de serviços com o Estado. Em cada ano, o governo atribui verbas residuais a título de indemnizações compensatórias para a empresa. Como o serviço regional é o que dá mais prejuízo, a CP prefere vender percursos a aplicar uma tarifação quilométrica, mais justa e mais compreensível para os passageiros. É por isso que uma viagem com diversos transbordos (e são tantos num país tão pequeno como Portugal) um cliente da CP está a pagar uma nova viagem sempre que muda de um comboio para outro. Desde Dezembro de 2009, por exemplo, a CP acabou com os comboios directos desde o Barreiro para o Algarve e obriga os passageiros a apanhar duas composições e a pagar mais caro.

Algo que, como refere Nélson Oliveira, engenheiro com pós-graduação em caminhos-de-ferro, "não acontece noutras redes estrangeiras de referência [SNCF em França, RENFE em Espanha, DB na Alemanha e Trenitália] onde os horários dos comboios mais lentos são conjugados com os dos rápidos para assegurar a função de recolectores e distribuidores".

Para este especialista, também presidente da Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos de Ferro, "as unidades de negócios centram-se na procura dos melhores resultados financeiros, o que nem sempre resulta em favor de um melhor serviço, pois numa exploração conjunta os benefícios de uns compensavam os prejuízos de outros". Um exemplo: como os regionais dão prejuízo, cada vez há menos oferta, "mas se os horários destes fossem conjugados com os dos comboios rápidos, como eram dantes, os regionais traziam passageiros para os serviços de longo curso, e o prejuízo era compensado".

Nélson Oliveira,

engenheiro

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