Entrevista a José Manuel Fernandes
"Sofri ataques de Santana, mas não tão pensados como os de Sócrates"
por Adriano Nobre, Publicado em 18 de Agosto de 2010
José Manuel Fernandes diz que mais do que o fim de um ciclo político, o país pode estar a aproximar-se do fim de um regime
Abandonou a direcção do "Público" no final de Outubro e continua a achar que foi a melhor decisão que tomou. Apesar de admitir ter saudades do ambiente da redacção, dá mais valor à liberdade que agora sente para fazer "algumas coisas que queria fazer há muito tempo". Mantém uma colaboração regular com o jornal, faz comentário político, mas está agora mais disponível para escrever livros e dar aulas, por exemplo. Relativamente à sua saída da direcção do "Público", fica apenas um lamento: a infeliz coincidência entre o timing de saída e a polémica que se arrastou durante meses com a manchete que agitou o mundo político no Verão de 2009.Passado um ano da publicação da manchete do "Público" sobre as alegadas escutas em Belém, que análise faz a toda a polémica que se seguiu?
Talvez não tivesse na altura uma noção tão clara como tenho hoje do tipo de forças que foram postas em movimento entre as eleições europeias, em Junho, e as eleições legislativas, em Setembro, para que a derrota das europeias não se repetisse. O que mais retenho, no entanto, é que foi das campanhas em que menos se verificou uma colagem entre o que foi prometido pelo partido vencedor e o que depois veio a acontecer.
Voltaria a fazer a mesma manchete?
No primeiro dia indiscutivelmente sim. No segundo dia... houve uma necessidade de justificar a notícia do primeiro dia que não era necessária. Era uma história do ano anterior [sobre um alegado espião do governo na comitiva presidencial numa visita à Madeira] que não tinha dado nada e que depois se decidiu recuperar. Talvez não fizesse grande sentido, apesar de servir de contexto. Mas quanto à primeira história faria tudo igual: eram declarações formais da casa civil do Presidente da República.
Cavaco Silva nunca desmentiu...
Pois não. Nem na comunicação que fez depois ao país. Tenho a convicção absoluta de que havia grande mal-estar entre Belém e São Bento. Porque havia a ideia - que nem acho que fosse verdadeira - de que aquela liderança do PSD era Cavaco Silva através de outra figura.
Acha que a recuperação da história pelo "DN", com a divulgação da fonte de Belém a poucos dias das legislativas, teve impacto no eleitorado?
Não acredito que tenha mudado nada. O que tornou claro foi que houve uma semana em que praticamente não houve campanha eleitoral, e isso sim pode ter tido influência: houve um silenciamento absoluto da campanha.
Nunca chegou a saber como é que esses mails publicados pelo "DN" saíram do sistema do "Público"?
Não. Nem o facto de essa troca de mails interna do "Público" ter sido publicada noutro jornal foi alvo de qualquer sanção ou processo na comissão da carteira. Não quiseram falar mais do assunto. Mas para mim a gravidade do que se passou mantém-se. Para todos os efeitos o que aconteceu foi uma intrusão na privacidade da comunicação das pessoas, que, sem se saber como, aparece publicada noutro jornal.
Não havia interesse público na divulgação da fonte de Belém?
De forma alguma. Se Belém tivesse desmentido a notícia haveria interesse público. Mas sem desmentido qual é o interesse? Por comparação com tanta coisa que teve discussão pública sobre violação de comunicações e sobre o que era dito nessas comunicações, aquela troca de mails do "Público" não tem gravidade nenhuma. Com a agravante de que o acesso a esses mails não foi autorizado por um juiz, ao contrário das escutas tão discutidas. Aliás, a própria pessoa em si, a "fonte", não faz parte da troca de mails. É só diz que disse. Agora imagine o que seria se transformássemos em prova tudo o que foi dito por todas as pessoas naquelas escutas em que se preparavam milhentas coisas muito mais gravosas, sobre compras de empresas, interesses... É por isso que me custa perceber que uma troca de mails possa ocupar tanto espaço noutro jornal. Até porque, como se veio a saber pelo jornal [o "Expresso"] a quem foi oferecida primeiro essa troca de mails do "Público", quem passou a informação era "uma fonte com interesses".
A sua saída do jornal já estava decidida, mas ocorre depois desta polémica. Ficou magoado por essa coincidência?
Se quando eu decidi a data de saída soubesse que isto ia acontecer entretanto, não tinha saído nessa altura. Mas as coisas já estavam decididas e não havia razão para não cumprir o que estava programado e assumir um ónus que não tinha razão de ser.
Sentiu-se empurrado da direcção pelas vozes contestatárias da linha editorial do "Público"?
Não. Sempre houve vozes contestatárias em todos os governos durante o período em que estive na direcção do "Público". Sempre houve problemas, porque o jornal sempre foi incómodo, sempre publicou histórias de que eles não gostavam e eu nunca deixei de criticar quem tinha de criticar. Já tinha sofrido ataques de Santana Lopes, por exemplo na campanha eleitoral de 2005, embora esses ataques fossem mais epidérmicos e não tão pensados, nem com a repercussão e a encenação que tiveram os ataques de José Sócrates num congresso.
Sente hoje o "Público" diferente? Já publicou um artigo de opinião de José Sócrates aquando do veto ao negócio PT/Telefónica.
Isso é um problema de José Sócrates e não meu. Nós pedimos muitas entrevistas e até era habitual os primeiros-ministros publicarem artigos do "Público" antes das cimeiras europeias. Aconteceu com António Guterres e Durão Barroso, mas não era um hábito de José Sócrates. E não era por o jornal não querer.
Disse na comissão de Ética que este foi o primeiro-ministro que pior lidou com a liberdade de imprensa. Porquê?
Ainda antes de ser primeiro-ministro já havia alguma tensão pela forma como ele lidava com questões banais como o facto de haver críticas contra ele no jornal. Hoje em dia, com tudo o que aconteceu no final da anterior legislatura, as pessoas esquecem um pouco o que se passou no período áureo dessa legislatura, com a maioria absoluta, entre 2007 e 2008. É bom lembrar, por exemplo, que quando nós publicámos a primeira história da licenciatura ela foi silenciada em todos os outros jornais, rádios ou televisões durante oito dias exactos. Só a Rádio Renascença pegou nisso episodicamente, mas tirou a peça do ar depois de receber um telefonema dos assessores. Ninguém noticiou aquilo, quando o interesse público era óbvio. Como é que isso aconteceu durante tanto tempo? É porque algo não estava bem neste sector: não foi apenas pela existência de telefonemas, mas devido a um determinado clima instalado. Aliás, quando o primeiro-ministro vai à RTP para dar as suas explicações sobre a licenciatura, se as pessoas só vissem a RTP não perceberiam de que é que ele estava a falar porque a RTP não tinha dado uma única notícia sobre o assunto. Só tinha havido referências vagas no programa de Marcelo Rebelo de Sousa. Isso é normal? É independente? Mas a Entidade Reguladora da Comunicação achou normal...
E a culpa foi dos assessores do governo ou do marasmo dos jornalistas?
Um bocado de tudo, porque estas coisas só acontecem quando há predisposição para que seja assim. Há governos que não têm um minuto de estado de graça, como foi o caso de Santana Lopes. Este governo, às vezes fazendo coisas exactamente iguais, teve todo o estado de graça. Hoje penso que não diminuiu a eficiência da máquina de comunicação do governo, mas percebe-se que o ambiente já não é o mesmo. Porquê? Porque não é possível voltar atrás e as coisas já não são como eram há cinco anos, já não há tanta tolerância e condescendência. Da mesma forma que, olhando para o noticiário que é publicado, se percebe que a liderança de Passos Coelho está a beneficiar de um estado de graça a que Ferreira Leite nunca teve direito. É um bocado parecido com o que aconteceu com José Sócrates no início, na relação com os meios quando aparecem.
Acha que está a passar para os jornalistas uma certa ideia de fim de regime socialista?
É provável. Mas acho que não é só isso, porque também poderia ter passado essa ideia para os jornalistas quando o PS perdeu as eleições europeias no ano passado. Nessa época até tinha havido uma derrota eleitoral de Sócrates e nesta altura não houve nenhuma. No entanto, nunca houve a percepção de Manuela Ferreira Leite como eventual futura primeira-ministra. Eu acho que isso tem a ver com questões culturais, geracionais, com a maneira de estar e com a identificação das pessoas.
Faltava marketing a Ferreira Leite?
Eu acho que nem o melhor marketing do mundo a salvava. Pela própria natureza dela, que não é vendável numa perspectiva de marketing, porque ela própria resistia a isso. Mas em relação aos estados de graça, às vezes nem sei bem definir de onde vêm. Limito-me a constatá-los. Por exemplo: durante anos a fio, sempre que o BE e Francisco Louçã apareciam na imprensa apareciam de forma positiva, era difícil encontrar retratos negativos. Hoje já é um pouco diferente, até pela usura da vida parlamentar. Por comparação, é muito difícil encontrar na comunicação social generalista visões positivas do PCP. E valem eleitoralmente o mesmo. Porquê? Talvez porque haja uma identificação cultural e até ideológica entre muitos jornalistas e o BE. Porque o BE era visto como uma coisa moderna e o PCP como uma coisa arqueológica. Isso percebe-se lendo os jornais, vendo televisão e ouvindo as conversas dos jornalistas.
Isso é uma perversão do jornalismo.
Sem dúvida. Mas dou outro exemplo: os referendos. No referendo ao aborto percebeu-se claramente que a maioria das redacções estava a favor do ''sim'' e que no referendo à regionalização a maioria estava a favor do ''não''. Por muito que se tentasse equilibrar isso com os artigos de opinião, quando chegava à altura das reportagens e à forma de apresentá-las, qualquer exagero da campanha de um lado ou de outro eram vistas de forma diferente. Radicalismos de um lado eram desculpados e de outro eram atacados e colocados em parangonas, ou glosados em cartoons. O erro está em achar-se que os jornalistas são completamente objectivos. Se se reconhecer que o jornalista não é completamente objectivo, conseguem encontrar-se formas de compensar essa subjectividade da profissão. É importante encontrar esses equilíbrio dentro das próprias redacções. Por exemplo, é bom que os temas sejam abordados por diferentes jornalistas para colocá-los sob diferentes subjectividades. Os jornalistas são subjectivos porque são seres humanos. Portanto os seus olhares, por mais objectivos que sejam, reflectem sempre a sua experiência de vida ou visão pessoal.
Não seria preferível os jornais assumirem posições, como por exemplo os "endorsement" dos jornais norte-americanos nas eleições?
Na maioria dos jornais norte-americanos o ''endorsement'' não corresponde formalmente a um apoio. Apesar desse ''endorsement'' eles tentam ser equidistantes e na prática é possível encontrar essa equidistância nalguns órgãos de informação. Noutros não é. Mas o ''endorsement'' não é alinhamento. Em Espanha, por exemplo, não temos jornais a dar sentido de voto, mas toda a gente sabe a tendência de cada jornal.
Em Portugal isso não acontece. Não seria preferível?
Não acontece por várias razões, mas a principal é por sermos um mercado muito pequeno e muito limitado a Lisboa e Porto. Isso significaria a necessidade de haver pelo menos um jornal popular de direita e um jornal popular de esquerda e depois um jornal de referência de direita e outro jornal de referência de esquerda. Como acontece em Espanha, Itália ou França. Mas eles têm mercados muito maiores. Em Portugal era impossível, por isso os jornais tentaram sempre abranger o maior número possível de públicos. Por outro lado, a própria cultura do jornalismo português ficou vacinada com a experiência do PREC e com a partidarização dos jornais. Isso resultou numa enorme quantidade de cadáveres de jornais e revistas que desapareceram. A partir daí passou a fazer-se um jornalismo mais equidistante. Ainda me lembro de quando fui para o "Expresso" me terem dito que eu ia para um jornal do PSD...
Por causa de Balsemão...
Sim, embora quando eu fui para lá ele já fosse primeiro-ministro. Mas eu sempre disse que estavam enganados, porque o jornal era diferente. Depois surgiu o "Semanário", que foi dos últimos jornais a ser lançado como um projecto político, ligado a uma área da direita. Isso libertou o "Expresso" da imagem de ligação ao PSD e permitiu-lhe afirmar-se como jornal independente. E afirmou-se quase como uma matriz para todo o resto da imprensa. Acho que hoje todos os jornais, de uma forma ou outra, copiam o "Expresso". Basta pensar que o "Público" saiu do "Expresso" e que depois condicionou muito todas as alterações na imprensa diária. E quem marcou a informação televisiva também foi a SIC, que veio igualmente da Impresa.
Agora que assume uma posição de comentador político, também partilha da opinião de que o governo PS está próximo do fim e que Portugal vai ter eleições legislativas em 2011?
Estamos numa fase um bocado pesada da política portuguesa. Não sei se estamos apenas no fim de um ciclo de Sócrates, como antes houve os ciclos de Cavaco ou Guterres, ou se não estaremos numa situação mais complicada que é o fim de um regime. Ainda no outro dia li um artigo do José Miguel Sardica sobre o fim da monarquia e em que ele diz que em Portugal os regimes nunca se souberam auto-regenerar e que morreram por dentro. Desfizeram-se. Há elementos semelhantes nesta altura, porque há muito azedume do eleitorado relativamente aos políticos. O que me parece mais complicado é encontrar formas naturais de sair deste ciclo de dívidas e défices intermináveis. Quando acabar este PEC vem outro a seguir. Qual é a saída? Qual é o partido que consegue ganhar as eleições sem ser com mandatos ao contrário daquilo que depois vão fazer no governo? Quando isso acontece muitas vezes, cria-se um deslaçamento entre os eleitores e os seus dirigentes. Dizer a verdade é algo que quase nunca acontece porque se tem a perspectiva de que se tem de ser optimista, se não as coisas ainda ficam pior.
Quando sai da direcção do "Público" e depois aparece numa conferência do PSD houve quem visse nessa atitude o revelar de uma "agenda" escondida.
Já fui a várias sessões de partidos quando me convidam. Não acho que tenha de ter direitos diminuídos como cidadão por ser, ou ter sido, director de um jornal. Se achar que faz sentido e que posso dar um contributo, participo.
Tem saudades do ambiente da redacção de um jornal?
Se disser que não tenho é mentira. Mas o sentimento de que estou a viver uma fase diferente e que posso fazer coisas que queria fazer há muito tempo, ainda supera largamente essas saudades. Quando penso no resto que ganhei continuo a sentir que foi a decisão acertada.