Os donos do Gerês

Os donos do Gerês, DN, Notícias Magazine

03/08/2010 | 21:22

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por Carla Amaro. Fotografia de Paulo Magalhães

Os habitantes do Parque Nacional da Peneda-Gerês andam há meses numa inquietação que não mata mas mói. Motivo: a proposta de revisão do Plano de Ordenamento do Parque, neste momento em apreciação na tutela. Além de uma série de restrições que os «impedem de viver como até aqui», interdita a instalação de parques eólicos. A população entende a proibição como um entrave ao desenvolvimento da região e um incentivo ao êxodo rural. E não entende porque é que as serras de norte a sul do país estão cheias de aerogeradores e as da Peneda-Gerês não os podem ter. Com o dinheiro do arrendamento dos terrenos baldios, esperavam resolver a falta de saneamento básico e de água canalizada em algumas aldeias.

Do alto da serra Amarela, em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG), José Augusto Fernandes fita um ávido olhar nas cumeadas longínquas e num tom inflamado acusa quem quer proibir os equipamentos eólicos dentro do único parque nacional em Portugal: «É uma ideia imbecil, que só podia vir de senhores doutores da capital enfiados o dia todo em gabinetes. É uma estupidez não aproveitar este vento para produzir energia.» A ira deste empresário do sector energético deve-se à revisão do Plano de Ordenamento (PO) do PNPG, cuja proposta está a marinar no Ministério do Ambiente para apreciação, não se sabendo, segundo apurámos junto do gabinete de imprensa da ministra Dulce Pássaro, quando haverá uma decisão final. Se dependesse do dono da ARELEC, empresa de energias renováveis, não tardaria, o parque nacional estaria cheio de ventoinhas gigantes nos locais onde o vento sopra mais forte. Mas será que o benefício económico de alguns, inclusive de quem gere os terrenos baldios que ocupam a área maior do parque, justifica desbravar caminhos e cicatrizar uma paisagem apreciada por todos?
Uma coisa parece, pelo menos a quem é de fora e preenche um dia a falar com os locais: a vida nas serras da Peneda-Gerês segue pacata, não sem fadiga, como todos os dias. Aqui e ali, cavalos estirados junto à estrada; mais à frente, cortando a circulação automóvel, vacas atravessam com lentidão a estrada em direcção aos pastos, restaurantes e cafés não fazem casa cheia mas também não lhes falta freguesia, quem faz os campos agrícolas retira o proveito da estafa da Primavera, época do plantio da batata ? agora a altura é de as cavar.
Independentemente do que está em jogo na proposta de revisão do PO, há quem faça a vida sem a inquietação que fervilha na generalidade da população. António Santos, por exemplo, que nada sabe do assunto. De enxada ao ombro, António desce a serra pela berma da estrada alcatroada, a passo lento, em direcção a casa. Em cima do corpo, um dia inteiro de trabalho no campo. O cansaço salta à vista neste homem de 83 anos, as pernas arqueadas parecem suportar com custo o peso da sua magreza. Depois de 33 anos em Lisboa, a servir refeições num restaurante «muito fino», voltou a Mixões da Serra, onde nasceu e cresceu até à idade da tropa. Regresso forçado. Saiu da terra para se «livrar» da dureza do arado e agora é dele que retira o complemento da reforma. «Planto um bocado de tudo, batatas, cebolas, cenouras, feijão, tomate.» A isso se obriga, se quer «viver os últimos anos» sem aperto. «O que tirar do chão não gasto no supermercado e assim sempre poupo algum».
Há umas semanas, nesta terra da freguesia de Valdreu, situada na zona mais montanhosa do concelho de Vila Verde, abençoaram-se os animais. António, como todos os anos, fez questão de assistir à cerimónia. Não que tenha gado para Santo António abençoar, simplesmente porque gosta desta tradição emblemática que se repete em Junho no Santuário de Santo António de Mixões da Serra. Mais do que os curiosos, quem nunca falta à festa é quem tem cavalos, vacas, ovelhas, porcos, coelhos e galinhas e os quer proteger das doenças. Deste ritual que atrai milhares de pessoas a Mixões, António sabe bem falar, porque tem recordações de quando era gaiato de pés descalços. «O meu pai também lá levou o gado. Tínhamos muitas vacas. O senhor padre benzia-as uma a uma, e ainda hoje é assim, todos os animais são benzidos à vez.» Alheio ao conflito que coloca autarcas e população de um lado e ambientalistas e direcção do PNPG de outro, não desperdiça cuidados em assuntos que o desviem da rotina entre a casa e a lavoura. E como ele, alguns mais, que questionados sobre o que de concreto contestam na proposta de revisão, reconhecem que não leram o documento e o que dizem denuncia-lhes um conhecimento pela rama. Exemplo de António Danaia, a quem as fadigas de uma existência a pastorear grandes rebanhos ? «de oitenta cabras, às vezes mais» ? o obrigaram a deixar as transumâncias. Debaixo do sol abrasador do meio-dia, rosto tisnado, limpa o suor, e não acrescenta mais que o lavrador.
No entanto, o desconhecimento de António Santos, António Danaia e de outros não faz a regra. A alteração do PO tem apoquentado muitos residentes conhecedores do conteúdo do documento. São vários os pontos de conflito: além da proibição da exploração energética do vento (e da água, por mini-hídricas), os habitantes queixam-se de não poderem prosseguir com velhos «usos e costumes», com tradições como o pastoreio, a caça e o acesso a determinadas áreas do PNPG.  
Antes de desaparecer numa cerrada mancha de arbustos, por um corredor de terra batida, criação sua «para encurtar o caminho para casa», António Santos questiona: «Isso [os geradores eólicos] é uma coisa boa para o povo? Se fizesse que os rapazes e as raparigas cá ficassem era bom. Isto está a ficar sem gente nova», diz quem também se foi embora à procura de outras oportunidades. O problema da desertificação é um dos argumentos da população contra a revisão do plano que vigora desde 1995. «Eles [a direcção do PNPG e o governo] querem fazer disto um território cem por cento selvagem, mas isto sempre teve gente, eu vivo cá, nunca saí daqui à procura de emprego, mas há quem saia porque isto está a ficar sem condições para viver», afirma Manuel Freitas, presidente do Conselho Directivo de Campo do Gerês. «Os nossos montes são aforados, são nossos, do povo, e eles querem privar-nos dos nossos usos e costumes.» Quais?, perguntamos. «Não nos deixam ir à lenha para queimar, com tanta que por aí há. Não querem deixar-nos levar o gado a pastar onde a gente quer, o que vai causar prejuízos económicos a muito boa gente.» A Manuel, inclusive. Este funcionário da EDP em situação de pré-reforma dedica-se à agropecuária e precisa de alimentar as vacas nos prados do monte de Campo do Gerês, onde «a erva é boa para comer e o mato e a carqueja são abundantes». Olha para o cimo do monte: «Daqui de baixo parece que lá em cima é só pedregulhos, mas não é, tem alimento bom para as vacas.» Manuel tem cinco vacas «aleitantes». «Tenho-as para dar de mamar aos bezerros. Faço criação de bezerros e depois vendo-os aos matadouros.»

«A paisagem fica feia com as ventoinhas»
Enquanto serve café aos clientes do restaurante Stop, em Campo do Gerês, Carla Silva admite que o seu caso não sustenta razões de queixa: «Eu até que nem estou mal, enquanto o restaurante tiver clientes vou fazendo a minha vida.» Carla é co-proprietária do Stop, que gere com a mãe, a cozinheira. Dona Lila e as suas codornizes ainda atraem clientes de todo o país e de Espanha, aqui tão perto, mas já não como antigamente, desde que «a estrada de acesso ficou intransitável». «Eles vinham com o cheiro das codornizes». Ainda vêm, «mas não é o mesmo movimento», diz quem governou a vida com caldo verde, presunto e codornizes no primeiro restaurante a surgir em todo o parque nacional, vai para 35 anos, e continua a ser paragem aos fins-de-semana, para almoçar, de «clientes importantes» como «a família de Sá Carneiro» e «os tios de António Vitorino». Isto para não falar de um almoço há muitos anos com a ex-primeira-ministra Maria de Lourdes Pintasilgo, que reuniu no Stop «mais de trezentas pessoas».
«Ninguém faz codornizes como a dona Lila», insiste o cliente habitual e vizinho Manuel Freitas. Quem dera ao presidente do Conselho Directivo de Campo de Gerês estar tão satisfeito com os desígnios do parque nacional como está, desde que lhes conhece o sabor, com a mestria culinária de dona Lila. Acrescenta à lista de querelas a proibição de parques eólicos: «Isso de não deixarem a gente meter aerogeradores onde eles fazem falta não nos ajuda nada. Seria bom para o povo. Falta fazer muita coisa aqui e se não fizermos os jovens fazem as malas e vão-se embora. Sem dinheiro não podemos fazer nada.» Carla volta à conversa: «Eu não sei se é bom ou se é mau para as pessoas daqui, eu cá não gosto de ver as ventoinhas lá em cima.» Continua: «A paisagem fica feia.» A mãe concorda: «O Gerês é natureza, as pessoas sentem-se atraídas pela beleza da paisagem e vêm passear até cá, ficam o fim-de-semana, algumas passam férias. Acho que o Gerês está bem assim, sem ventoinhas.» Manuel Freitas contra-argumenta: «Mas as ventoinhas trazem dinheiro que podia aplicar-se no desenvolvimento da região.»
O Movimento Peneda-Gerês com Gente é uma das vozes mais críticas do novo documento, representa «nove mil pessoas da região» e tem como porta-voz José Carlos Pires, de Campo do Gerês. Para este habitante e dono de um parque de campismo na região, o texto agora proposto «é excessivamente restritivo, com a agravante de que impõe taxas para se fazer o que até aqui fazíamos sem problema». Por exemplo, extrair pedra ou proceder à limpeza dos terrenos privados. «Se o terreno é meu, porque tenho de pedir autorização ao Estado e de pagar uma taxa para cortar mato? Não faz sentido nenhum, não aceitamos isso.» Outro residente do parque, Américo Barroso, de São João do Campo, concorda: «É absurdo, se quisermos pedra para erguer um muro, pavimentar o chão ou fazer uma casa temos de ir comprá-la a Braga. Para quê, se temos aí muita?», aponta para as cumeadas rochosas. Quanto aos aerogeradores, «não fazem cá falta nenhuma, acho que iam estragar a beleza natural deste sítio. Até podem ter vantagens do ponto de vista financeiro, mas o dinheiro não justifica tudo. Sou funcionário da EDP, sei que a minha empresa está a investir muito em energias renováveis, mas aqui no Gerês não gostava nada de as ver. Neste aspecto, não me importo com as restrições [propostas na revisão do Plano de Ordenamento].»
Pelo testemunho de Carla Silva, de Dona Lila e de Américo Barroso, podemos aferir que, afinal, nem todos os que vivem no parque nacional querem que os aerogeradores invadam as cumeadas do PNPG. Em todo o caso, o líder do Movimento Peneda-Gerês com Gente fala pela maioria da população e com firmeza garante: «Não vamos aceitar que nos impeçam de ter proveitos económicos com os parques eólicos. Porque é que nós não os podemos ter?  Eles estão por todo o lado.» Isso é uma evidência. De onde quer que se esteja no parque nacional, é impossível não os ver. Olhe-se em volta, em frente, atrás, não faltam parques eólicos. No lado espanhol também os há, às dezenas, só que lá o espaço tem a designação de parque natural, cá está classificado como parque nacional desde 1971, o que só por si, defende o director do PNPG, «exige a implementação de medidas de protecção ambiental». Lagido Domingos justifica a interdição dos investimentos no sector da energia eólica com os estudos de impacte ambiental até agora apresentados, cujas conclusões são invariáveis: «Esses investimentos põem em causa valores naturais relevantes, sendo por isso mais adequado e transparente interditá-los.» De salientar que ao longo de anos, antes desta proposta de revisão do PO do PNPG, foram submetidos a apreciação inúmeros projectos para exploração eólica dentro do parque nacional, tendo sido todos rejeitados pelos efeitos ambientais negativos inerentes, conforme indicavam os estudos de impacte ambiental.

O que tem o parque nacional que os outros não têm?
A maior parte das juntas de freguesia uniram-se ao movimento para lutar contra a «estagnação a que a região será obrigada», caso o novo plano seja aprovado. «Como é que querem manter as pessoas aqui se nos proíbem quase tudo? O parque não é uma reserva selvagem como querem fazer crer. O parque é habitado, mas eles, parece, querem que isto fique deserto», afirma, revoltado, Manuel Barreira, presidente da Junta de Freguesia do Soajo. Revoltado, porque vê-se impedido de arrecadar os ganhos que outras juntas de freguesia conseguem pela cedência de terrenos baldios para a instalação de aerogeradores. Exemplifica com o caso da Junta de Freguesia de Parada, que «terá rendimentos na ordem dos sessenta mil euros por ano» [tentámos durante dias confirmar esta informação, mas na Junta de Freguesia de Parada nunca atenderam o telefone].
Que valores naturais devem ser preservados no parque nacional que não devem ser preservados nos muitos parques naturais que temos? O que tem o Parque Peneda-Gerês, o único em Portugal com o estatuto de parque nacional, que os parques naturais não têm? De norte a sul do país, a presença dos aerogeradores nos pontos mais altos das serras já quase faz parte da paisagem, de tantos que são. O primeiro parque eólico em Portugal foi construído em 1986, na ilha de Porto Santo, na Madeira, e actualmente são 205, com 1983 aerogeradores na totalidade (dados de Maio de 2010 da Direcção-Geral de Energia e Geologia). Um aumento que se deve à pressão mundial para diminuir a dependência dos países produtores de petróleo e encontrar uma alternativa aos combustíveis fósseis. «Mais uma razão», alega José Carlos Pires, «para não proibir os parques eólicos no PNPG.»
Manuel Barreira não avança a quantia que irá perder, ou melhor, que não irá ganhar, mas sabe onde a aplicaria: «Por exemplo, na criação de emprego, reforçava a equipa de sapadores florestais e a equipa de limpeza de baldios, levava a rede de saneamento básico às habitações mais distantes, pavimentava caminhos e recuperava outros em mau estado, ajudava alguns idosos a pagar o lar, arranjava transporte para os doentes que para fazerem exames têm de se deslocar ao Hospital de Viana do Castelo, poderia fazer muita coisa com esse dinheiro.» Só na freguesia do Soajo, certifica Manuel Barreira, existem vários locais nos seis mil hectares de baldios geridos pela junta onde se poderia instalar aerogeradores. «Na Paradela, no alto da Pedrada, no Couto Velho, e mais uns quantos sítios muito ventosos. Em todos não, que não queremos ver as serras daqui cheias de ventoinhas.»

Dois mil euros por megawatt
Quem aqui vive trata a região como sua propriedade e não como de todos os portugueses, não obstante tratar-se de um parque nacional. A questão não é simples, tendo em conta que o parque tem três donos com interesses nada consensuais. Ao Estado pertence a menor fatia, apenas 7,4 por cento, 12 por cento é propriedade privada, e o restante é das compartes (populações que habitam no parque). São as assembleias de compartes que elegem os conselhos directivos, que por sua vez gerem os baldios. Donos à parte, o certo é que o arrendamento dos terrenos com potencial para exploração eólica poderia render-lhes muito dinheiro.
José Augusto Fernandes, o investidor com interesse no PNPG, calcula ganhos para os proprietários que rondam os «dois mil euros por megawatt». Uma propriedade com capacidade para instalar 30 MW, o que «não seria difícil encontrar aqui», somaria um rendimento extra de sessenta mil euros. Para as juntas de freguesia gestoras de baldios ? ou, em rigor, cujos presidentes integram os conselhos directivos ?, este montante não é despiciendo, já que muita obra está por fazer. Muitas habitações não têm sequer rede de saneamento básico nem água canalizada. É o caso de Germil, uma aldeia de montanha com 5,4 quilómetros quadrados, situada num dos cumes da serra Amarela e a poucos quilómetros de Ponte da Barca, a sede de concelho. Não terá mais do que setenta habitantes (Censos de 2001), embora o número de eleitores ronde os 118. O presidente da Junta de Germil, João Pereira, era menino quando foi criado o parque nacional, mas lembra-se das expectativas alicerçadas em promessas: «Ouvia-se falar em oportunidades, em novos empregos, que as pessoas já não iam precisar de melhorar a vida noutros países. A oportunidade surgiu, de facto. Sabe para quem? Para um cantoneiro. Só ele é que arranjou emprego. Fora isso, nunca se criaram condições para fixar ninguém aqui.» Difícil conceber que um problema tão grave como a desertificação, que afecta muitas regiões interiores do país, encontre solução num ou dois parques eólicos. «Claro que não, mas ajudava a junta de freguesia a angariar receitas para pavimentar as ruas de algumas aldeias, fazer o saneamento básico e instalar água canalizada.»  
Germil não é caso único. Na freguesia de Cabana Maior, as aldeias de Bostelinhos, Bouças Donas, Vilela de Lages, Boimo, Portela e Igreja também carecem de rede de saneamento básico. O que vale é que a maioria dos seus habitantes, «à volta de sessenta por cento», está imigrada nos Estados Unidos, França, Canadá, Alemanha, Suíça e Andorra. Manuel Branco, presidente da Junta de Cabana Maior, diz que «gastaria as receitas provenientes das eólicas no melhoramento dos acessos aos baldios». «Melhorava também», acrescenta, «os caminhos dentro do parque, porque a direcção do PNPG não tem feito nada.» Com a aposta do governo de José Sócrates nas energias de fontes renováveis, e tendo em conta a necessidade de alcançar metas para a redução de emissões de gases, Manuel Branco não entende a interdição à instalação de parques eólicos no PNPG: «Nasci no parque, vivo no parque, conheço-o como a palma das minhas mãos e sei que existe aqui muito potencial para tirar partido do vento.»
O empresário José Augusto Fernandes tem a mesma certeza e assegura que o interior do PNPG apresenta mais capacidade eólica do que os terrenos fora do parque, onde a exploração é permitida. E aponta alguns dos melhores locais: «Todo o planalto da serra do Soajo, os cumes da serra do Laboreiro, a serra da Peneda (excepto a faixa rochosa que vai do recuo da Barragem do Lindoso até um pouco acima de Anta), a serra Amarela e outros.»

«Não queremos destruir o que é nosso»
A tese defendida por ambientalistas de que os parques eólicos seriam uma fonte de destruição do parque é rejeitada pelo líder do Movimento Peneda-Gerês com Gente. «Não queremos isso. O parque é a nossa casa, não faria sentido estragá-lo.» José Carlos Pires conta uma história real contada de geração em geração na família: «No ano de 1900 a população local destruiu uma fábrica vidreira porque tinha receio de que a fábrica destruísse a floresta. As pessoas de agora têm o mesmo sentimento de protecção. Nós somos pelo parque, não somos contra, nada faríamos para o prejudicar.»
Convicção diferente apresenta Lagido Domingos, para quem a instalação de aerogeradores não significa apenas proveito económico e valorização energética. Significa também a destruição de ecossistemas relevantes, uma vez que obrigaria ao desbravamento de áreas para criar acessos aos próprios parques eólicos. «Não faz ideia do movimento de máquinas para montar aquelas estruturas, além de que é necessário proceder à manutenção regular das mesmas», o que implicaria um vaivém de gente e de transportes, indesejável numa área com «valores naturais únicos». É o caso do teixo, uma das mais raras e ameaçadas árvores da flora portuguesa, que no PNPG são mais de mil enquanto no resto do país não são mais do que cinquenta. O mesmo em relação ao carvalho e ao azevinho, que no parque são centenários, e à azereira. Em termos de fauna, Lagido Domingos lembra os esforços desenvolvidos pelos lados português e espanhol do parque para a reintrodução da cabra montês na área, desaparecida durante cem anos, entre 1900 e 2000. «Agora temos algumas centenas de exemplares, mas seria por pouco tempo a partir do momento em que se abrissem acessos. Mesmo à revelia das autoridades, há pessoas que fazem provas motorizadas, por exemplo nos acessos aos transmissores [antenas] instalados numa cumeada. Esses caminhos têm sido um pólo de conflitos. Imagine o que seria nos acessos aos parques eólicos.»
À riqueza natural descrita por Lagido Domingos, o fundador da FAPAS, Fundo para a Protecção dos Animais Selvagens, acrescenta o sobreiro, a águia-real e o lobo. O sobreiro porque é centenário, a águia-real porque está extinta no parque e «há a possibilidade de reintroduzi-la» e o lobo porque existem apenas seis a oito alcateias. Miguel Dantas da Gama fez parte da comissão de acompanhamento da revisão do PO e congratula-se que a proposta enviada para apreciação à tutela contemple a proibição de instalar aerogeradores em toda a área do Parque Nacional da Peneda-Gerês. «Seria desastroso cometerem aqui os erros que estão à vista nas áreas envolventes, na serra do Barroso, na serra da Cabreira, em todas as serras do Alto Minho e nas de Montalegre».  
Os argumentos da direcção do PNPG, da equipa que elaborou a proposta de revisão e dos ambientalistas não são válidos para a população do parque nacional. «Convençam-nos de que os aerogeradores prejudicam este território. Se nos convencerem não protestamos mais», desafia José Carlos Pires. Diz-se que a união faz a força e esse parece ser o caso das gentes do Parque Nacional da Peneda-Gerês que, com razão ou sem ela, prometem «ir até ao fim» na luta pelo «direito ao desenvolvimento da região», nem que tenham de «recorrer aos tribunais».

Crescimento exponencial
Em Portugal, a produção total de energia a partir de renováveis cresceu 91 por cento em apenas cinco meses (de Janeiro a Maio de 2010), relativamente a igual período do ano passado, resultando num saldo de potência instalada de 9294 MW, dos quais 3780 MW são provenientes de fonte eólica (a hídrica ainda é, das fontes renováveis, a maior geradora de energia). Durante esse período, a energia proveniente do aproveitamento do vento cresceu cinquenta por cento. Desde a instalação do primeiro parque eólico em Portugal, em 1986, na ilha de Porto Santo, na Madeira, não pararam de surgir, como cogumelos, nas cumeadas de montanha. Actualmente existem 1983 aerogeradores distribuídos por 205 parques em todo o território continental, o que coloca o país numa posição cimeira, na Europa, em termos de capacidade de geração de base eólica (a Alemanha lidera a lista).
[Fonte: DGEG]

Há quem queira vê-las de perto

Na serra do Ralo, em Celorico da Beira, foi inaugurado há meses um trilho pedestre ao longo da zona de produção de energia eólica, instalada nas cumeadas. São 11 quilómetros de percurso, que as populações locais e gente de fora aproveitam para caminhadas ou simplesmente passear e apreciar a paisagem. Quem diria que as ventoinhas gigantes podiam constituir atracção turística? Tendo em conta a multidão que assistiu à cerimónia de inauguração no passado mês de Maio e o número de pessoas que aos fins-de-semana se deslocam até à serra do Ralo para percorrer o trilho, não há dúvida de que o potencial dos parques eólicos vai além da valorização energética de um recurso natural como o vento. A empresa proprietária deste parque eólico fala numa afluência de «mil visitantes desde o mês de Maio». Além do parque eólico da serra do Ralo, a GDF SUEZ explora mais três parques em Portugal, um nas Terras Altas de Fafe (nos concelhos de Fafe e Celorico de Basto), outro em Nave (abrange os concelhos de Vila Nova de Paiva, Castro Daire e Moimenta da Beira) e outro em Mourisca (em Castro Daire e Vila Nova de Paiva). Destes, só no de Fafe foi criado um percurso pedestre de 14 quilómetros, «também muito frequentado, com um número de visitantes ligeiramente superior ao do Ralo». Cada um dos trilhos está aberto a quem os quiser percorrer, a pé ou de bicicleta. E isto porque é objectivo da empresa «promover o pedestrianismo, o conhecimento sobre a energia eólica e as boas práticas ambientais, ao mesmo tempo que se aprecia a beleza natural envolvente».

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