As contas do TGV: um comboio para implodir? (2)

As contas do TGV: um comboio para implodir? (a)

II - Análise dos custos

Na Europa, apenas 11 países têm ou já programaram a construção de linhas de Alta Velocidade (AV). A tabela anexa ajuda a compreender alguns aspectos importantes do contexto em que deve ser avaliada esta parcela do sistema de transportes...


Avelino de Jesus

Na Europa, apenas 11 países têm ou já programaram a construção de linhas de Alta Velocidade (AV). A tabela anexa ajuda a compreender alguns aspectos importantes do contexto em que deve ser avaliada esta parcela do sistema de transportes.

A AV representará, em média, 10% do total da extensão da rede ferroviária europeia. Portugal ocupará o 2º lugar, a seguir a Espanha, com 33%, seguido, de longe, pela França, com 14%; a extensão da AV relativamente à população do País é igualmente notável: também aqui ocupamos o 2º lugar, logo atrás de Espanha. Mas no caso da proporção da AV no PIB e na área do território, ocupamos mesmo a posição cimeira, embora sempre com o nosso vizinho muito perto.

A considerar os projectos existentes e documentados pelo "Departamento de Alta Velocidade da UIC", o País ocupará posição de destaque sob um outro aspecto: é o único projecto programado na Europa prevendo a velocidade de 350 Km /hora.

Todos estes elementos contextuais nos levam a uma interpretação que tomo por legítima e bem fundamentada: os nossos poderes públicos integraram a AV no conjunto dos mais importantes desígnios nacionais. Esta interpretação é reforçada pela avaliação dos custos, que a seguir passo a apresentar.

De facto, não se pode deixar de ter a interpretação referida se aos dados acima evidenciados acrescentarmos o nível dos encargos e dos custos envolvidos nos investimentos programados.
Tomemos o seguinte ponto de partida: a dívida conjunta da Refer e da CP, em crescimento rápido e continuo, já ultrapassava, no fim de 2008, os 8.026 milhões de euros - cerca de 5% do PIB português(b). No conjunto, as duas empresas apresentaram, em 2008, na senda de trajectória anterior, resultados líquidos negativos que ultrapassam os 370 milhões de euros. Os números que vamos propor a seguir destinam-se, naturalmente, a ser somados a estes valores. Por cómoda convenção, estes deficits e estas dívidas estão fora das contas do Estado no sentido estrito. Por realismo e responsabilidade, devemos integrar uns e outras nas responsabilidades do Estado.

Os custos por quilómetro de construção das linhas de Alta Velocidade variam muito, de 1 para 10, podendo ir de 6 a 60 milhões de euros por km. Na Europa, o valor médio ronda os 18 milhões de euros. Nas 7 linhas espanholas em construção, os custos por km variam entre 9 e 23,4 milhões de euros. Nas nossas 3 linhas com data de conclusão já fixada, os custos oficialmente estimados variam entre 8,5 e 15 milhões de euros. O valor médio previsto oficialmente em Portugal para o conjunto das 5 linhas é de 14 milhões de euros por km; é uma previsão manifestamente irrealista, tendo em atenção vários factores, nomeadamente a natureza da nossa geografia, a densidade populacional e, sobretudo, a tradição de derrapagem nas obras públicas no País.

O valor do investimento global nos 1.000 km previstos de rede de Alta Velocidade - considerando a experiência internacional - não deve, na melhor das hipóteses, ser inferior a 20 biliões de euros.

Os encargos anuais permanentes com a rede de Alta Velocidade - incluindo os custos com os juros, a manutenção e renovação da rede e compensações aos futuros operadores, mas excluindo a amortização da dívida a contrair para a realização do investimento - deverão ser de cerca de 2.500 milhões de euros. Estes encargos permanentes representarão cerca de 1,5% do PIB; trata-se de um montante equivalente - como se pode verificar na tabela anexa - às despesas médias actuais de investimento e manutenção da totalidade das infra-estruturas de transporte.

Os fundos comunitários são pouco relevantes, não ultrapassando, seguramente, os 20% dos custos oficiais, e cairão para os 10% dos custos reais finais. Mas o mais importante de tudo são os custos anuais permanentes: os custos de manutenção e de operação, que ficam, naturalmente, na totalidade, a cargo das contas públicas.

As parcerias público-privadas também não constituem um elemento decisivo na avaliação da bondade do projecto. Aquelas podem, se bem geridas - com uma administração pública séria e competente -, diminuir os custos de gestão. Mas o mais natural é que, não assumindo os parceiros privados o risco comercial dos empreendimentos, sejam as PPP, neste caso, um factor adicional de agravamento e de opacidade dos custos. O nível elevado destes encargos limita a realização de outras despesas na área dos transportes, nomeadamente os investimentos na mobilidade urbana e suburbana e, sobretudo, o aumento das despesas de manutenção das infra-estruturas construídas nos últimos 20 anos. Portugal gastou em manutenção, nos últimos 10 anos, apenas 11% das despesas totais com as infra-estruturas de transporte, contra 32% da média europeia; trata-se de uma situação insustentável que, a continuar, começará a colocar em risco a conservação dos equipamentos. No caso da via ferroviária, a manutenção assume uma importância acrescida. Como se pode ver na tabela, a média europeia de gastos com a manutenção representa 39% de todas as despesas, quando no nosso País gastamos apenas 13%; esta proporção, num período em que se investiu muito pouco na ferrovia, não pode deixar de ser significativamente aumentada. A hipótese da degradação acelerada da rede ferroviária tradicional pela concentração dos recursos na rede de Alta Velocidade deve considerada uma ameaça séria.

Os custos reais do projecto de Alta Velocidade, como se evidenciou, são enormes em termos absolutos mas, principalmente, quando comparados com a dimensão física e económica do País. Estes custos são - a menos que arrastem consigo benefícios também de grande dimensão - incomportáveis e mesmo ameaçadores para a estabilidade económica e social.

Resta, e impõe-se, portanto, avaliar no próximo artigo os benefícios do projecto de Alta Velocidade.

 


(a) O presente artigo é o segundo de uma série de 3 dedicada à análise económica da Alta Velocidade em Portugal. O 3º artigo avaliará os benefícios dos projectos.

(b) Para uma percepção do contexto: as equivalentes francesas (RFF e SNCF) tinham na mesma data uma dívida de 32.900 milhões - 1,7% do PIB francês. Esta situação é considerada em França um dos escândalos de desorçamentação das contas públicas domésticas e do elevado nível da dívida do Estado.

Director do ISG - Instituto Superior de Gestão
majesus@isg.pt
Coluna à terça-feira

NOTA: o quadro referido é este:

Panorama da alta velocidade

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